Religião, que até os anos 1990 era mais um pretexto para piadas, ganha nuances e protagonismo com o streaming
O intelectual brilhante, mas fisicamente frágil. A mãe controladora e bisbilhoteira. A patricinha mimada e consumista —ou JAP, princesa judia americana, na sigla em inglês. Estereótipos judeus como esses se repetem nas telas praticamente desde o início do cinema, do primeiro longa falado, “O Cantor de Jazz”, sobre um jovem que troca os cantos litúrgicos da sinagoga pelos palcos, a, bem, “Seinfeld”.
Ou, pelo menos, assim costumava ser. Desde a chegada do streaming, a representação do judaísmo no cinema e na televisão parece ter não crescido só em volume mas também em nuances.
Pense, por exemplo, em Danielle, a protagonista de “Shiva Baby”, que chega agora ao Mubi. Millennial e bissexual, ela esbarra com o “sugar daddy”, um cara rico e mais velho com quem ela se relaciona para ganhar presentes, no shiva do título, ritual de luto judeu. Ou nas heroínas de “Maravilhosa Sra. Maisel”, “Crazy Ex-Girlfriend” e “Broad City”, herdeiras de Woody Allen —sem a parte das acusações de abuso. Ou ainda em “Shtisel” e “Nada Ortodoxa” que mostram os dilemas enfrentados pelas fechadas comunidades ultra ortodoxas hoje.
Esse monte de títulos pode ser explicado, em parte, pelo modelo global em que se baseiam plataformas como a Netflix e o Amazon Prime. Henry Bial, professor da Universidade do Kansas e autor de “Acting Jewish” —algo como soando judeu—, lembra que o streaming permitiu que a produção televisiva israelense, muito centrada na experiência judaica, enfim escoasse diretamente para o resto do mundo.
Antes essas séries eram adaptadas para a realidade dos Estados Unidos, caso de “Homeland” e “In Therapy”, mas com esses serviços elas passaram a ser exibidas em sua língua e contextos originais sem maiores riscos financeiros, uma vez que já se pagaram localmente.
Além disso, prossegue Bial, o negócio da TV é por natureza repetitivo. “Se algo funciona, outros tentam tirar vantagem”, diz ele. “Suspeito que se alguém dissesse que tem uma ideia de série com Shira Haas [atriz de ‘Shtisel’ e ‘Nada Ortodoxa’], os executivos diriam ‘ótimo’, porque já sabemos que o público quer ver do que ela é capaz.”
Bial aventa ainda uma outra razão, menos evidente, para a efervescência dessa produção hoje. Segundo ele, por décadas os judeus imaginaram a si mesmos como membros de uma maioria branca americana. São o que o pesquisador britânico Nathan Abrams chama de judeus só no conceito no livro “The New Jew in Film”, o novo judeu no cinema.
Essas figuras, recorrentes na produção dos anos 1970, 1980 e até 1990, têm como únicas marcas do judaísmo o sobrenome e a profissão liberal. Sua religião não é detalhada em cena e serve sobretudo de pretexto para piadas, enquanto os feriados que comemoram, como o Hanukkah e o Pessach, mais parecem versões estilizadas do Natal e da Páscoa cristãos. Como atores não judeus com frequência interpretam esses personagens, a aparência deles tampouco reforça clichês.
Se essa era a regra até os anos 1990, agora, no entanto, a ênfase é na diversidade, diz Bial. A tendência, ele argumenta, é reforçada inclusive pela interface das plataformas de streaming. “Aquela tela inicial se presta a personagens visualmente marcantes, porque temos que tomar uma decisão com base em mini pôsteres.”
A mudança mais importante aconteceu, no entanto, na lógica do consumo televisivo. Bial afirma que na época da programação linear, quando os episódios eram exibidos uma vez por semana, tudo, de arcos narrativos a caracterizações, era mais genérico. Ao disponibilizar temporadas inteiras de uma vez e induzir o espectador a maratonar, o streaming deu margem à criação de tramas e personagens mais complexos e específicos.
“Se você assiste a uma série numa televisão de 13 polegadas, um chapéu é só um chapéu. Mas se assiste àquilo numa TV de plasma em alta definição, é preciso acertar o chapéu, ou o público vai notar”, resume o professor, que se diz impressionado com o nível de detalhes, por exemplo, de “Nada Ortodoxa”, em que os atores falam iídiche e a representação de figurinos e rituais têm um quê de etnográfico.
Até agora, essas mudanças parecem ter beneficiado principalmente as personagens femininas. Vide a maioria dos títulos listados aqui, em que o judaísmo é, mais do que um motivo para piadas, uma presença religiosa e social na vida das protagonistas.
“A JAP e a mãe judia são formas de contar uma história sem ter trabalho. Quando se tem 16 ou seis horas para fazer isso, você realmente precisa tratar as personagens como indivíduos”, observa Bial, lembrando que os últimos anos marcaram também a chegada de muitas mulheres judias atrás das câmeras.
É o caso de Emma Seligman, diretora de “Shiva Baby”. A cineasta canadense de 26 anos conta que só foi ver sua própria comunidade liberal e reformista representada nas telas na série “Transparent”, de 2014. Em seu longa de estreia, uma comédia com tensão comparável a de um terror de Jordan Peele, essa mesma comunidade é retratada de forma ambivalente, ao mesmo tempo afetuosa e sufocante.
A mãe de Danielle é terna e preocupada com a filha, mas não abandona o estresse crônico clássico das mães judias, movendo mundos e fundos para arrumar um emprego e um namorado para a filha e implorando que ela “deixe de gracinhas” com a ex-namorada. O “sugar daddy” da protagonista é casado e tem um filho com uma típica shiksa, moça não judia. Há inclusive uma piada com o Holocausto.
Questionada sobre esses clichês, Seligman diz que estes, infelizmente, costumam vir da realidade. “Não inventei muita coisa, e o roteiro veio da minha vivência e experiência. Tentei usar isso ao máximo para tornar tridimensionais os personagens, de modo que mesmo que houvesse elementos neles que parecem estereótipos, eles fossem pessoas coerentes.”
Mesmo assim, sua Danielle não deixa de ser um acréscimo significativo ao rol de personagens judeus não heterossexuais do cinema e da televisão —uma lista ainda bastante tímida, segundo Nathan Abrams, o autor de “The New Jew in Film”.
Seligman ressalta a importância de ver ainda mais diversidade nas telas. Ela aponta em especial a carência de perspectivas de judeus sefarditas, vindos da península Ibérica, e mizharim, do Oriente Médio, em comparação com aquelas dos asquenazes, descendentes dos europeus do centro e do leste que muitas vezes passam por brancos.
Abrams é outro a salientar a dominância histórica dos asquenazes nessa produção audiovisual. Sua aposta é que o racismo dentro da comunidade judaica será o novo grande tópico dos filmes e séries que vêm por aí, dividindo espaço com personagens femininas mais desenvolvidas e novas abordagens em termos de sexualidade e de identidade de gênero.
O pesquisador britânico nota como o atual ambiente, nem tão favorável aos judeus em vários países, não os tem impedido de lançar um olhar duro sobre si mesmos.
É o contrário do que aconteceu, por exemplo, na era de ouro de Hollwood, quando os donos de estúdios, judeus em sua maioria, buscaram invisibilizar essa identidade por medo do antissemitismo. “Agora, se você quer ver a representação mais honesta e brutal dos judeus, você assiste à TV judaica”, diz ele.
Por Clara Balbi | Folha de S. Paulo
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