75 anos depois em Auschwitz

No dia 23 de Janeiro passado eu embarquei para uma viagem que iria mudar minha vida, uma viagem que por muito tempo eu quis evitar, mas com a certeza de que um dia seria feita pela crença no dever que todos temos de ver de perto, sentir e lembrar o inferno que nossos antepassados passaram ali. Tinha em mente que não poderia ir “à toa” (como se fosse possível), mas esperava por uma oportunidade significativa, uma oportunidade irrecusável, inevitável, impagável. Enfim ela veio.

Cheguei em Cracóvia na Polônia, poucos dias antes do 75º aniversario da libertação de Auschwitz, a convite do presidente do World Jewish Congress, Embaixador Ronald S. Lauder. Como membro do JDCorps (Jewish Diplomatic Corps – braço diplomático do WJC) fiz parte da delegação de vinte e sete diplomatas voluntários de vários países que participaram do ato oficial com a presença de autoridades representantes de cinquenta países, lideranças religiosas, Reis e Rainhas, Presidentes e mais de duzentos sobreviventes, Judeus, Roma (ciganos) e poloneses.

Cracóvia foi uma das cidades com a maior comunidade judaica da Polônia, que por sua vez tinha a maior comunidade judaica da Europa, uma das maiores do mundo na época com mais de três milhões de Judeus. 90% destes foram assassinados durante os seis anos de purgatório que passaram antes do seu destino final.

Sempre soube que um dia passaria por este lugar, por esta experiência. Tinha que sentir o clima frio, os odores, os barulhos, a atmosfera pesada, e a tristeza profunda que cada canto daquele lugar nos remete. Tinha que encarar um pouco do mal que muitos do meu povo (entre tantos, duas bisavós das minhas filhas) sofreram na pele. Obviamente hoje ninguém nunca poderá sentir nada próximo do que seres humanos transformados em trapos, rebaixados a vermes, usurpados de suas posses, de sua família, de seu futuro, passaram ali. Mas é o mais próximo que se pode chegar, e é preciso!

Chegamos na sexta-feira pouco antes do Shabat, rapidamente fomos com o grupo para um jantar na Sinagoga de Cracóvia com a comunidade local (o muito pouco que sobrou) além da ilustre presença do Sr. Lauder. As emoções começaram logo de cara, a felicidade da comunidade local em receber Judeus de tantas parte do mundo em sua casa, era latente. Décadas depois, Judeus, muitos dos quais descendentes de quem passou por aquele lugar, ali de volta, rezando, jantando e cantando.

Sábado a noite foi de mais emoção com uma cerimônia de Havdalah no meio da praça do antigo bairro judaico de Cracóvia, com a presença dos sobreviventes. Só de lembrar ao escrever estas palavras, a emoção volta com tudo. Sabe o que é presenciar a comoção destas pessoas em estar naquele lugar depois de tudo que passaram, mas desta vez com suas famílias, com seus descendentes gritando alto e claro, vocês não nos venceram, aqui estamos novamente apesar de tudo e de todos. Terminamos a cerimônia com gritos de Am Israel Chai!

Cerimônia de Havdalah (fim do Shabat), com sobreviventes em plena praça do bairro judaico de Cracóvia.

Nos dias seguintes tivemos muitos painéis de discussões com historiadores, professores, sobreviventes e libertadores. Foram oportunidades únicas de escutar de pessoas que passaram ali, in loco, pelo pior que o ser humano pode fazer contra seu próximo, mas que de alguma maneira conseguiram sobreviver. Setenta e cinco anos depois lá estavam no mesmo país, há poucos quilômetros de onde saíram como esqueletos, sem nada, sem ninguém e mesmo assim, na maioria das vezes, apesar de todas as cicatrizes, apesar de toda perda, refizeram suas vidas, criaram famílias, prosperaram e mesmo com os fantasmas do passado, lá estavam.

Painel com o sobrevivente de Auschwitz, Ralph Hackman.

Na segunda-feira havia chegado o dia do ato oficial, muita segurança, policia e exercito como é de se esperar em eventos deste porte e nível. Chegamos a enorme tenda levantada para abrigar mais de 3.000 pessoas de várias partes do mundo e proteger do frio intenso daquela noite. A tenda abrigou também o famigerado portão de Birkenau por onde passavam os trens com milhares de Judeus à caminho do campo de extermínio, centenas de milhares passaram ali por uma única e ultima vez, foram assassinados minutos depois em uma fabrica de morte com escala industrial, com toda tecnologia e eficiência germânica a serviço do mal.

Delegação do JDCorps com o Presidente do WJC, Sr. Ronald Lauder, no dia do Ato em Auschwitz.
(Foto: Shahar Azran)

O ato deu voz em discursos emocionantes à vários sobreviventes ali presentes, um deles nos lembrou que aquele lugar não caiu do céu, foi sendo construído ao longo do tempo, primeiro com as leis que apartavam os judeus da vida social na Alemanha, já não podiam sentar no mesmo banco de praça, já não podiam frequentar as mesmas escolas, já não podiam fazer compras no mesmo horário que os arianos, em pouco tempo já não podiam viver.

Sobreviventes no dia do Ato. (Foto: Shahar Azran)

O Presidente do WJC, Ronald S. Lauder, fez um discurso contundente em frente aos  lideres de dezenas de países, não titubeou em apontar o dedo e lembrar que seus antepassados muito pouco, ou quase nada fizeram para evitar aquilo e que, setenta e cinco anos depois, o antissemitismo voltava com força total dentro de suas fronteiras. Fez questão de lembrar, que hoje temos Israel, nossa pátria, nosso porto seguro, mas que nem sempre foi assim, e não podemos tomar como garantia, portanto todos ali precisam apoiar o Judeu das Nações que diuturnamente segue sendo difamado de maneira baixa pelos governos de muitos dos que ali também estavam presentes.

Embaixador Roland S. Lauder, Presidente do WJC durante discurso no Ato de 75 anos da libertação de Auschwitz. (Foto: Shahar Azran)

Em determinado momento as autoridades foram convidadas a depositar uma coroa de flores no monumento às vitimas, na parte externa. Foi quando decidimos dar uma saída, sentir o frio que ali estava cortando a pele, a escuridão profunda daquele lugar que apesar de tantas luzes não iluminavam nada, a atmosfera pesada que caia sobre nossas cabeças nos trazendo um pouco da realidade que seres humanos indefesos passaram ali, pouco mais de setenta e cinco anos antes. Mesmo com todas as roupas modernas nos protegendo do frio, mesmo muito bem alimentados e saudáveis, a terrível sensação de estar ali era insuportável, nós com tudo de bom que tivemos todos este tempo, fomos incapazes de passar mais que cinco minutos naquele inferno gelado, imaginem as almas que por ali passaram, com fome, com medo, no ápice de sua desesperança ….

Atmosfera fria e pesada junto a cerca de arame farpado, à época eletrificada, que feriu e matou tantas pessoas.

No dia seguinte, último do programa, tivemos a oportunidade de uma visita guiada ao complexo de Auschwitz-Birkenau, no grupo estavam presentes varias autoridades no assunto inclusive um senhor que fez às vezes do “guia” depois de passar tanto tempo, da pior maneira possível, naquele lugar. Foram tantas perguntas, tamanha a vontade de absorver o máximo possível daquelas pessoas naquele lugar, tantas questões e ensinamentos, que quase perdi o ônibus de retorno.

Ao fundo o gigantesco campo de extermínio de Birkenau, que ceifou a vida de 1.100.000 Judeus.

Foi uma viagem para ficar na historia, uma chance impagável que ficará guardada na minha memória eternamente, e o compromisso de compartilhar, de instruir para nunca esquecer, para sempre lembrar. #WeRemember…

Ariel Krok

*Trechos deste texto foram originalmente publicadas no jornal Tribuna Judaica em Fevereiro de 2020.